domingo, 21 de março de 2010

Um cão que não era amigo

Rosane Roehrs Gelati

2° lugar do II Concurso Literário Farroupilha 2010


O portão estava somente encostado. Chamou uma vez. Ninguém apareceu. Mais uma. Nada. Parecia não ter ninguém, mas já que estavam ali, não custava conferir de perto. A casa era antiga, verde escura, janelas de ferro, marrom. O portão de entrada era no lado esquerdo da casa, estreito, só para pessoas, não tinha garagem. O carro “dormia” na rua. Eram mais ou menos 8 ou 9 metros até chegar na primeira porta, que dava acesso para a cozinha. Por ali se costumavam receber as visitas. Mais alguns passos e chegava-se aos fundos. Tudo estava quieto, tinha um sol agradável, era inverno e o local exalava cheiro de limo. O chão de tijolos era esverdeado e um pouco liso, conseqüência da falta de sol naquele local, pois uma enorme árvore fazia sombra. Somente raios dele por ela passavam.

Entrou e encostou o portão. Carregava a caçula de dois anos no colo e caminhando a seu lado, o primogênito que ainda não tinha completado cinco anos.

Ela foi entrando chamando pela dona da casa. Bateu com a mão direita na porta e não obteve resposta, aliás, foi aí que apareceu “alguém”, correndo, latindo e espumando. Surgiu do nada, estava visivelmente contrariado por ser visitado por humanos. Ela só disse “Meu Deus”, apertou firme o bebê no colo e segurou com força a mão do filho como se com isso conseguiria protegê-lo. Em segundos, a vida, e a morte, passou pela sua mente. Ela somente conseguiu dizer ”Não se mexam”. O cachorro correu em direção dos três e pousou suas patas dianteiras sobre o braço da mãe que amparava o bebê, quase os derrubando. O cachorro era um buldogue enorme, preto, sua cabeça e boca estavam na mesma altura do rosto do bebê. Seus olhos faiscavam. O choro e os gritos foram engolidos. Tudo parou. O cachorro estava ofegante, encarando um a um, impaciente, esperando qualquer ação dos humanos para poder agir, defender o seu território, já que os invasores não haviam lhe pedido licença para entrar.

Cada segundo pareceu uma eternidade. O raciocínio foi rápido. Nenhum movimento brusco, nenhum grito. Nada. Foi isso que ouviu durante toda sua vida ”o animal só ataca se sentir ameaçado”. Até os sons dos pássaros das árvores cessaram. Congelaram a imagem. Foi como se dessem um “pause” no controle remoto. Talvez por um ou dois minutos ficaram os quatro, frente a frente, testando e mantendo o controle dos nervos. O esperado aconteceu. O cachorro baixou as patas: estavam todas no chão. Primeira vitória dela e dos filhos. O choro quis aparecer, mas foi contido novamente. Permaneceram mais algum tempo assim. Tinha que fazer alguma coisa. A oportunidade apareceu quando o cão deu meia volta, caminhou uns três metros e se deitou, patas dianteiras cruzadas, cabeça erguida, ofegante, olhos atentos, encarando-os. Nada passava despercebido. Volta e meia erguia-se, observava e novamente acomodava-se. A mãe aproveitou a oportunidade para tentarem sair com vida daquele lugar.

- Fiquem bem quietinhos, vai dar tudo certo, o anjo da guarda está aqui cuidando de nós. O cachorro já é quase nosso amigo. Mano, faz como a mãe, vai andando para trás sem se virar, mexa somente os pés, bem devagarinho, com bastante calma. Ela se perguntava o que é que um cachorro daqueles estava fazendo ali, solto, sem focinheira, dentro do pátio da casa, é claro, mas o portão só estava encostado, e no interior, não precisa marcar hora para visitar uma amiga. Aliás, não precisava, pois se tivesse marcado a visita, com certeza não estariam correndo perigo.

E assim começaram a se mover. A lenta saída poderia ser a salvação ou a desgraça. Novo susto. Imediatamente foram surpreendidos pelo cachorro de pé, no lado deles. O medo os paralisou. Mais algum tempo e o cachorro novamente se afastou e acomodou-se numa posição do tipo “Tô de olho em vocês.” A “paquera” entre o animal e os humanos continuava.

Era uma rua central, movimentada, mas naquele momento, ninguém passou por ali para socorrê-los, talvez fosse melhor assim, não se sabe.

Os minutos pareciam horas. Lentamente continuaram a saída discretíssima. O cachorro parecia estar entendendo tudo. O portão foi aberto com muita calma, para não despertar a raiva do indesejado animal. Clic. O portão se abriu. O cachorro levantou e foi lentamente na direção deles. Com um sinal, o menino saiu. A mãe esperou ele se afastar um pouco. O cachorro parou novamente. Passaram-se mais alguns segundos e, ela, com o bebê no colo, sempre no mesmo braço, deu mais uns passos sem erguer os pés. Tudo quieto. O cão continuava encarando os visitantes, mas parado, língua de fora. Ela estava tocando o portão com a mão e sabia que era a hora de dar o último passo para fora daquele lugar. Foi aí que sempre encarando o animal, deu o tão esperado passo da liberdade. Ela saiu e fechou o portão imediatamente. Na mesma hora o cachorro já estava no portão, latindo, espumando. Andaram um pouco os três, chorando baixinho. Pararam. Não conseguiam mais caminhar. Sentiam um peso enorme nas pernas. Se olharam e choraram. Estavam os três abaixados, abraçados e chorando. Assim permaneceram, como a se consolarem, precisavam daquele momento. Ainda o pavor tomava conta. Viveram um momento único e muito desgastante. A liberdade estava do lado deles, não corriam mais perigo, mas choravam, de tristeza, de alegria, por estarem bem, por estarem vivos.

Levantaram, começaram a se recompor e o menino disse:

- Posso contar pro pai?

- Pode, querido, pode sim. Beijaram-se e foram andando. Planejando como contar a aventura, pois afinal de contas, não se passa por uma situação como essa todo dia. A pequena permanecia abraçada na mãe, um abraço bem apertado, bico na boca, cabecinha caída no ombro de sua mãezinha, olhinhos com lágrimas.

O que ele foram fazer lá? Buscar uma informação sobre o avô. Somente e dona da casa sabia do paradeiro dele. Mas não foi desta vez que obtiveram notícias do velho.

- Quero mamá!

- A mãezinha já faz, tá?

Parece que o sol estava mais claro, o dia mais lindo, talvez o mais lindo de todos até então.